Desde a adolescência, eu e minha irmã temos uma piada interna: qualquer dia, vamos encontrar, andando pela rua, a parte de baixo correta dos nossos corpos. Isso porque, evidentemente, houve algum engano na “linha de montagem divina”, e alguém nos atarraxou um quadril errado, muito maior do que deveria. Eu também sempre brinquei que gostaria de ser como o caranguejo, e andar só de lado. Tão magra de perfil e tão larga de frente! Parece até que sou duas pessoas diferentes…
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Levei 45 anos para descobrir que essa sensação de ter dois corpos incompatíveis unidos em um só, tão comum na minha família, é a principal característica de uma doença com nome pomposo: lipedema. Uma condição genética e progressiva, com gatilhos hormonais (puberdade, gravidez, menopausa etc), que causa acúmulo atípico de gordura nos quadris, coxas, pernas e braços. Mas isso eu só aprendi recentemente. Até então, achava que meus culotes e coxas grossas e disformes eram biotipo, coisa de família, gordura localizada, celulite. Aos olhos da sociedade, representavam falta de força de vontade, preguiça, desleixo.
Há algumas semanas, me deparei com uma publicação sobre lipedema em uma rede social e, ao ver fotos de pacientes, tomei um susto. Mandei o link para a minha irmã na hora: “Acho que a gente tem isso! Olha essas fotos!” Atônita, virei uma noite lendo a descrição dos sintomas e pesquisando. Parecia o roteiro da minha vida!
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Desproporção corporal, gordura dolorosa e com nódulos, sensação de peso e inchaço, pele mais fria ao toque na região afetada, hematomas. Propensão a flacidez da pele, frouxidão ligamentar, menor massa muscular nos membros inferiores, e problemas nas articulações. Bingo! Estava ali uma possível explicação para todo um histórico de dores, que culminaram num diagnóstico recente de artrose no quadril. “Lesão de atleta”, me disse o ortopedista. Logo eu, que jamais consegui correr sequer um quilômetro…
Como é que eu, jornalista com acesso a todo tipo de informação, nunca tinha ouvido falar em lipedema? Questionei familiares, colegas e amigos. Ninguém conhecia tampouco. Continuei minha busca na Internet e encontrei bons conteúdos de alguns poucos profissionais, além de associações e movimentos criados nos últimos anos, para dar visibilidade ao tema.
Aprendi que o lipedema afeta, na quase totalidade dos casos, mulheres. E não são poucas: nada menos que 12% das brasileiras são portadoras. É muita gente! Dá para imaginar uma doença que afete 12% dos homens e ninguém conheça? Pois é… O lipedema foi descrito ainda nos anos 1940, mas só foi incluído na Classificação Internacional de Doenças que entrou em vigor no ano passado, a CID 11. Uma demora de mais de oito décadas!
Em 45 anos de vida passei por inúmeros médicos e profissionais da saúde. Nenhum jamais mencionou lipedema, apesar de o meu ser um caso evidente. A recomendação era sempre perder peso, ainda que isso envolvesse tomar anfetaminas, ansiolíticos, diuréticos e laxantes. Ninguém parecia acreditar no meu relato de que, mesmo com dieta e exercícios, ainda que eu perdesse peso, aquela gordura localizada não saía. “Você deve estar comendo escondido”, cheguei a ouvir de um endocrinologista.
Fui uma criança e uma adolescente gorda e, na idade adulta, oscilei entre o sobrepeso e a obesidade. Na época não tinha consciência disso, mas meu lipedema começou a se agravar quando passei a tomar pílula anticoncepcional, aos 19 anos, após um diagnóstico de Síndrome de Ovários Policísticos, que me causava acne severa.
Nesses últimos 26 anos, só interrompi o uso da pílula para engravidar, em 2009. Na gestação, me alimentei de forma exemplar, “orgulho da nutri”! Ainda assim, engordei 14 quilos e tive que lidar com muito inchaço nas pernas. Logo depois do parto, desapareceram 11 dos 14 quilos, e minha barriga rapidamente voltou ao normal, mas surgiram novos e enormes coxins de gordura nos meus quadris.
O resultado de tanta descredibilização e frustração foi que eu, simplesmente, desisti. Passei anos fugindo de consultórios médicos e academias. Pra que tanta dieta e exercício, se não funciona? Nesse processo, atingi 104 quilos, mal distribuídos em 1,74 m de altura. Eram 130 centímetros só no quadril!
Quando me via triste, na frente do espelho, minha filha, ainda bem pequena, me abraçava pelas pernas, encostava o rosto no meu culote, e dizia: “Mamãe, eu adoro os seus mocotós. São tão fofinhos”. Aos 3 anos, ela já tinha entendido tudo sobre sororidade (e inventado um apelido para a gordura estranha da mamãe).
Nos últimos cinco anos, depois de muita terapia, perdi 22 quilos, mudei minha alimentação e faço exercícios, mas sigo com 118 centímetros de quadril, manequim 48, três tamanhos a mais do que o busto e o abdômen. A costureira e o elástico na cintura são meus melhores amigos! Praticamente não tenho gordura abdominal, mas os culotes não saem de mim, nem com reza forte! É frustrante… Agora sei o porquê.
A obesidade potencializa o lipedema, por serem ambas doenças inflamatórias, mas a condição também atinge pessoas magras. O lipedema é uma doença crônica e inflamatória, que não tem cura, mas tem tratamento para reduzir o desconforto e evitar a progressão.
O protocolo é individualizado, e inclui dieta anti-inflamatória, uso de terapia de compressão, drenagem linfática e fisioterapia, entre outras medidas. A lipoaspiração pode ser uma ferramenta importante, mas nunca sozinha, nem antes do tratamento conservador, que deve ser mantido de forma permanente, segundo os especialistas.
Finalmente, depois de muita busca, cheguei a profissionais qualificados, que confirmaram meu “autodiagnóstico”. Lipedema tipo 2, grau 2 — são quatro tipos, dependendo das áreas do corpo afetadas, e quatro níveis de gravidade. Saí do consultório e chorei. De alívio por, finalmente, ter uma resposta, e de indignação, pela total negligência com que o lipedema é tratado até hoje.
A doença não consta no rol de cobertura dos planos de saúde, e ainda não tem protocolo adequado de tratamento pelo SUS. E quem não pode pagar? Quantos milhões de mulheres sofreram e ainda sofrem com dores, cansaço e perda de mobilidade, apenas por falta de informação e acesso? Sem falar dos efeitos psicológicos da pressão estética, da culpa e da frustração de passar a vida brigando com o espelho, e perdendo sempre.
Lipedema não é um problema estético. É importante frisar que nem todas as pacientes apresentam todos os sintomas, e que não existe cura milagrosa. Se você acha que pode ter a doença, procure um médico com experiência no tema. E dê cá um abraço! Somos muitas.
* Jornalista, âncora da CBN, em depoimento a Adriana Dias Lopes